Seja para emissoras ou produtoras, há uma espécie de “apagão” de profissionais qualificados em diferentes níveis. Fomos buscar entender onde está o problema.
Não é de hoje que a preocupação com a falta de mão de obra capacitada vêm tomando conta das empresas brasileiras. Segundo uma pesquisa realizada pela Fundação Dom Cabral, 90% das empresas do país tem dificuldade em preencher seus quadros, seja por escassez de profissionais gabaritados (83%) ou por deficiência na formação básica (58%). Levando em conta este panorama geral, claro que não seria diferente no caso das emissoras de rádio e televisão e no setor audiovisual.
Seja na busca de pessoal para as áreas técnicas e de engenharia ou mesmo produtores de conteúdo, as empresas têm encontrado dificuldade em alinhar as demandas de seu dia-a-dia com o que os profissionais do mercado estão habilitados à fazer. “Quando olhado do ponto de vista das especificidades. Existe um gargalo em toda a indústria quando se fala de mão de obra técnica, e nas emissoras não é diferente”, explica Luiz Carlos Abrahão, Diretor de Tecnologia da ABERT (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão).
Abrahão assumiu a recém criada diretoria da associação no começo de junho exatamente com a missão de fazer esta ponte entre a entidade patronal e os profissionais da área técnica. Com mais de 42 anos de experiência dentro da TV Globo, o diretor acredita que há uma série de fatores que têm criado esta dificuldade, entre eles, um abandono da busca pela formação técnica. “As universidades foram crescendo em volume e isso gerou um descompasso em relação às escolas técnicas. As emissoras de Rádio e TV precisam de técnicos de 2º grau, e há um apagão das escolas técnicas”, afirma.
Segundo um estudo realizado pela instituição internacional ManpowerGroup, a mão de obra de técnicos, como eletricistas, mecânicos, profissionais de controle de qualidade, manutenção eletrônica, etc, é o terceiro setor com mais falta de oferta de mão de obra no pais. De acordo com a pesquisa, apenas 13% dos jovens brasileiros entre 15-19 anos buscam o aprendizado técnico, enquanto que, entre os países desenvolvidos, a média beira os 50%.
De acordo com Abrahão, o formato do ensino técnico no Brasil pode ser um dos motivos deste quadro. “Há um problema de existirem poucos cursos técnicos de grade única, então o estudante ou precisa primeiro fazer o ensino médio e depois o técnico ou cursar simultâneo em outro período, e dai, por uma questão de tempo, fazer uma faculdade parece mais atrativo”, explica.
A própria massificação da ideia de que o diploma de ensino superior é uma passagem para uma melhor qualidade de vida, perpetuada pelo grande investimento publicitário dos conglomerados educacionais privados, corrobora com a situação. O resultado, além da dificuldade na busca de mão de obra técnica e a precarização de formados em nível superior exercendo estas funções, há também a má formação universitária por conta de cursos, seja por serem demasiadamente comercialescos, ou simplesmente por não terem em seu DNA a vocação para a educação técnica audiovisual.
90% das empresas do país tem dificuldade em preencher seus quadros, seja por escassez de profissionais gabaritados (83%) ou por deficiência na formação básica (58%)
“O que as universidades oferecem hoje não é o suficiente para o que as emissoras de Rádio e Televisão demandam”, afirma categórico o vice-diretor do Inatel Carlos Nazareth Motta Marins. Com mais de 50 anos de história, a instituição de ensino localizada em Santa Rita do Sapucaí, Minas Gerais, tornou-se um polo do ensino de eletrônica aplicada às áreas de telecomunicações e radiodifusão, o que não se reflete na maioria dos cursos superiores do país. “Quando olhamos o cenário brasileiro, o número de instituições que abordam assuntos pertinentes às emissoras é cada vez menor. Hoje o mercado tem falta de mão de obra qualificada, não só para radiodifusão, mas para áreas de comunicações ópticas, móveis, TI, o mercado está bastante disputado”, explica.
Broadcast vs Telecom
Esta disputa citada pelo professor Carlos Marins é muito mais acirrada do que parece. Nos últimos anos tornou-se evidente uma espécie de oposição entre os segmentos de Telecomunicação, sobretudo provedoras de acesso por redes móveis e o de radiodifusão tradicional. Principalmente por conta do crescente lobby das Telcos sobre governos e entidades regulatórias para a cessão de espectro à novas modalidades como 4G e 5G, como também para o controle do conteúdo que chega até a casa dos consumidores, uma vez que estas empresas passaram a controlar também os produtores de conteúdo e as ofertas de vídeo por OTT.
Não para por ai, há uma evidente concorrência entre os setores na hora de atrair os melhores profissionais de tecnologia. “ Um profissional formado em Engenharia de Telecomunicações, que poderia atender as empresas de radiodifusão, acaba sofrendo um forte assédio das empresas de Telecom e TI”, afirma Marins.
Claro que há uma óbvia questão de tamanho de mercado e velocidade de crescimento, que pesa muito para o lado das empresas do ramo de Telecom, visto o recente desacelerar do segmento broadcast. “Naturalmente as empresas de Telecom e de TI oferecem muito mais vagas ao mercado. Por conta disso, acabam atraindo os profissionais para lá. Como já há uma carência da mão de obra especializada, acaba sendo uma disputa desnivelada em desfavor das emissoras”, explica Luiz Carlos Abrahão, Diretor de Tecnologia da ABERT.
Há também a questão de posicionamento da própria indústria. Parece que os anos como líder absoluto na preferência dos profissionais de telecomunicações fez as emissoras pararem de investir nos próprios programas de carreira perante aos entrantes no mercado. “O mercado de televisão precisa se mostrar como uma boa alternativa. Com o consumidor sendo massificado todos os dias pelos avanços da tecnologia de telecomunicações, surge uma dificuldade para o profissional em ver que há boas carreiras no segmento broadcast”, afirma Carlos Marins.
O vice-diretor do Inatel defende que as emissoras, sobretudo por meio de suas entidades de representação, passem a intervir mais junto às universidades, propondo grades, fazendo parcerias e ações de divulgação, mas ele concorda que há uma ausência da tecnologia broadcast no próprio setor acadêmico. “As instituições no Brasil oferecem cursos de Engenharia Elétrica, que abordam a questão de maquinaria, com algumas disciplinas na área de Telecom, não é algo específico. Deveria haver um pool de empresas, talvez por meio da ABERT ou da SET para identificar quais instituições têm este DNA e, através destas instituições, criar programas e oportunidade para os estudantes terem contato com este mundo de televisão”, explica.
Outra questão é que muitas vezes a intervenção das emissoras e suas entidades supracitadas, por meio de congressos e parcerias, acaba sendo muito focada na questão teórica, o que atrai pouca atenção dos estudantes. “Existem parcerias com emissoras, mas sempre é uma coisa muito focada na academia, na pesquisa, falta mostrar que o mercado de televisão não é mais aquela estrutura engessada de anos atrás”, afirma Rogério Furlan, professor da disciplina de Pós-Produção para TV e Vídeo Digital da Fundação Casper Líbero, uma das mais renomadas instituições de ensino para a área de produção televisiva do país. “O que falta é mostrar para esta nova gama de profissionais que eles podem juntar as características que eles gostam das novas mídias dentro do universo televisivo, mostrar as possibilidades da nova televisão para estes alunos”, completa.
“As emissoras precisam ter uma maior aproximação com as entidades de ensino, mas há também a necessidade de contribuir mais efetivamente com a formação destes profissionais. O que as empresas fazem mais comumente é fornecer treinamentos para a execução das funções contratadas e só. Isso é pouco”, conclui Luiz Carlos Abrahão.
Broadcast vs TI
Mas não vale somente colocar o peso no próprio mercado pelo despreparo de alguns profissionais. A transformação que vem vivendo o segmento de tecnologia para produção e distribuição de vídeo tornou-se um desafio. O próprio uso da expressão “Produção e Distribuição” em detrimento de Radiodifusão já é um sinal dos tempos de que, não só se produz para televisão nem só se produz aos moldes do que era considerado televisão.
Cada vez mais à área técnica de uma emissora de rádio e televisão está recheada de sistemas de infraestrutura IP, desde a troca dos cabos de sinal digital por cabos de rede aos fluxos de trabalho em arquivos, e agora, em nuvem. Temos visto os principais lançamentos em termos de tecnologias sair dos equipamentos de produção de grande formato, para coisas mais abstratas como Reconhecimento Facial por Machine Learning, ou renderização em tempo real de gráficos usando Game Engines.
Essa linha cinza entre a engenharia e a tecnologia da informação está pegando os centros de formação de profissionais do mundo todo de calças curtas. “Ao longo dos anos o ambiente de televisão se tornou mais complexo. No passado era a parte de estúdio e transmissão. Hoje, o profissional de TV precisa não só ter uma visão da área de broadacst mas também de redes, computadores, DSP, etc”, explica Carlos Marins do INATEL. Este é um desafio grande o bastante para colocar até mesmo os veteranos da indústria em cheque, uma vez que o seu dia-a-dia passou a contar com exigências que não fazem parte de seu extenso know how de fazer televisão.
O próprio uso da expressão “Produção e Distribuição” em detrimento de Radiodifusão já é um sinal dos tempos de que, não só se produz para televisão nem só se produz aos moldes do que era considerado televisão.
“O grande desafio dos próximos anos é fazer que os profissionais de engenharia estejam preparados para a transformação digital. Se a gente não preparar o profissional para esta dinâmica do mercado, ele não se conecta com as tecnologias que vêm avançando”, conclui Marins.
Uma questão de comportamento
Não é só do lado da engenharia e tecnologia que o segmento de produção e distribuição audiovisual têm sofrido grandes baixas na oferta de mão de obra, entre os profissionais de produção de conteúdo este padrão se mantém. Tanto para emissoras de TV como para Produtoras de Vídeo há pouca oferta e baixa qualificação em áreas mais estratégicas como gestão e planejamento.
Parte deste fenômeno surge por conta de um padrão comportamental das novas gerações, os chamados de Millenials, que são os atuais entrantes do mercado de trabalho e que não tem o costume de consumir mídia tradicional, e acabam projetando isso em suas escolhas de carreira. “Temos o desafio hoje de resgatar o interesse dos alunos pelas mídias tradicionais, pois cada vez mais eles estão buscando mídias alternativas ou novidades, como produção de conteúdo para internet, dispositivos móveis e afins”, afirma Rogério Furlan, professor da Fundação Cásper Líbero. A instituição paulista ligada à TV Gazeta é uma das mais tradicionais na formação de profissionais de Jornalismo e Rádio&TV, com um foco histórico na preparação de profissionais exatamente para emissoras.
De acordo com Furlan, o desinteresse dos estudantes pelo consumo das mídias tradicionais acaba se transformando um desafio para o professor. Muito da origem da linguagem utilizada nas novas mídias vêm de uma adaptação do que foi construído para mídias tradicionais, de forma que é preciso referenciar aos alunos o que estão estudando. “Muitas vezes uso referências clássicas vindas da TV ou Cinema na sala de aula, e os alunos simplesmente não reconhecem”, explica o professor.
O fenômeno da evasão voluntária de mão de obra para mídias mais tradicionais acaba gerando uma espécie de paradoxo mercadológico, uma vez que a maioria dos meios de comunicação mais modernos não têm modelos de negócio definidos e acabam oscilando em absorção de novos entrantes ao mesmo tempo que emissoras de rádio e TV e produtoras sentem escassez de recursos humanos. “A maior demanda por profissionais ainda acontecem nas mídias tradicionais porque são as empresas que contratam mais. É preciso colocar na cabeça dos alunos que ele não pode ter preconceito com o tipo de mídia, ele precisa é entender o processo de produção e como aplicá-lo para cada mídia e ir para o mercado”, explica Furlan.
Mesmo do lado das produção de conteúdo audiovisual puro, o conhecimento sobre as mídias tradicionais ainda é o que abre mais portas para as novas mídias. “O que vemos hoje é que as Produtoras que tradicionalmente atendem demandas televisivas, passaram a produzir conteúdos para outras plataformas de forma mais bem sucedida”, garante Furlan.
Outra questão que preocupa na formação de profissionais é o baixo preparo quando o assunto é a gestão de projetos e produtos audiovisuais. Principalmente entre a produtores, o que há no Brasil é um mercado dominado por mais de 60% de formandos em Cinema, Publicidade e Jornalismo, segundo levantamento realizado pela Apro(Associação Brasileira de Produção de Obras Audiovisuais), e que buscam muita capacitação nas áreas que envolvem os afazeres criativos, como roteiro, tecnologia audiovisual, edição, fotografia, etc e pouco no planejamento, comercialização e gestão de empresas e projetos.
Foi exatamente como uma forma de sanar esta deficiência que a Apro celebrou um convênio com o Sebrae para a criação do programa “Objetiva – Empreendedorismo em Foco” que visa capacitar o mercado de forma acessível. “Faltava um entendimento dos profissionais pelo lado mais comercial de seus projetos. Como vender um projeto, como perpetuar, como otimizar em outras plataformas, como atender as demandas dos canais e das grades de programação, portanto a iniciativa surgiu desta demanda do próprio mercado”, explica Odete Cruz, gerente executiva do Projeto.
Iniciado em 2013 como uma resposta ao crescimento da produção gerado pela promulgação da lei 12.485 (Lei do Seac) que criou cotas para produção nacional na TV Paga, o Objetiva já atendeu mais de 300 empresas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e no Distrito Federal, além de Bahia e Mato-Grosso com parcerias do Sebrae regional. “Eu vejo que o profissional de audiovisual ainda não consegue entender a dimensão da necessidade do conhecimento em Gestão em seu trabalho”, explica Odete Cruz. “Como os produtores estão sempre muito ligados na criação do projeto em si, a gestão fica em segundo em plano quando deveria caminhar junto”.
Seja na produção de conteúdo seja na área técnica, falta às empresas de audiovisual valorizar-se mais, criando situações de interesse e retorno real para que seja cada vez mais competitivo fazer parte desta indústria, gerando benefícios para todos. “Nos falta intensificar o papel de atrair estes profissionais. Estamos deixando passar a oportunidade de sensibilizar mais esta mão de obra”, conclui Luiz Carlos Abrahão da Abert.
VAV: A plataforma brasileira para busca de profissionais e conteúdos
“Imaginem um Linkedin, só que fala a nossa língua, se comunica com o audiovisual”. É desta forma enfática que Isadora Lemes definiu a mais nova plataforma de networking brasileira batizada de VAV Audiovisual. Criada pela empreendedora junto com sua sócia Jade Goldfreind, o serviço com ares disruptivos e prometendo a modernidade das redes sociais para facilitar os trâmites entre empresas e profissionais do mercado teve sua estreia com bastante pompa no auditório da FAAP, em São Paulo, em meados de maio.
O evento, que contou contou com um público de maioria de estudantes, mas com alguns profissionais de produção e distribuição presentes, tratou de explicar a ideia por trás de plataforma que já vem tomando forma há mais de um ano. “A VAV é uma plataforma que visa a viabilização de obras audiovisuais, autorais ou publicitárias, por meio de automações”, explica de forma altamente técnica Goldfreind.
Esmiuçando os detalhes, a VAV é um serviço, materializado na forma de um portal web (e futuramente um App) que servirá à três propósitos iniciais: Permitir que os usuários criem perfis para divulgação de seus trabalhos e serviços visando inserção em projetos ou no mercado de trabalho; Abrir espaço para a gestão e visibilidade de projetos, abrindo espaço para conseguir outros colaboradores ou mesmo investidores interessados; E, por fim, servir como vitrine de obras audiovisuais para que canais de distribuição possam buscar por conteúdos licenciáveis, por meio de buscas avançadas, alinhando à suas necessidades de programação, orçamento e descomplicando a burocracia necessária. Tudo de forma gratuita.
A princípio, pode soar ambicioso, mas todo o projeto da VAV vem sendo desenvolvido de forma bastante madura, levando em conta as capacidades de desenvolvimento do time da empresa e da absorção do mercado. “Estamos implementando as fases por etapas, até para podermos adaptar e receber feedbacks de algumas das iniciativas da plataforma”, explica Lemes. Por hora, somente a parte de Perfil de Usuário e Inscrição de Projetos está funcional, com a funcionalidade de negociação de licenciamento como próximo passo e a criação de serviços premium, oferecidos aos usuários por meio de pagamentos, nos próximos 6 meses.
Como forma de ofertar ainda mais credibilidade a plataforma, a VAV já nasce com algumas parcerias de peso, como da Apro, Canon, Ancine, SPCine, LA FIlm Institute, Fox, entre muitas outras (a Panorama Audiovisual é apoiadora da iniciativa). “Vemos que as empresas do audiovisual ficam sempre muito restrita à bolha de profissionais que elas sempre trabalham, o que torna o dia-a-dia insustentável, devido ao número de obras simultâneas sendo realizadas hoje no país. Usando a VAV estas empresas poderão ter acesso à um banco de dados de profissionais e obras qualificados e validados pelo próprio mercado”, explica Goldfreind.