Com imagens gélidas e atmosfera subliminar, a tecnologia foi o complemento sutil, mas essencial para contar essa história com elementos sobrenaturais
Com uma história de terror estruturada em uma narrativa dramática com elementos sobrenaturais, a série Desalma estreia nesta quinta-feira (22) na plataforma de streaming Globoplay. Representando um gênero que é cada vez mais explorado na indústria audiovisual do País, a série desenvolvida pelos Estúdios Globo diversifica a temática e estética da produção seriada nacional, e antes mesmo da estreia já está com segunda temporada confirmada e foi exibida no Festival Internacional de Cinema de Berlim.
Retratada na década de 1980 em Brígida, cidade do interior do Sul do país, Desalma conta a história de uma população assombrada por fenômenos sobrenaturais após o desaparecimento de uma jovem durante a tradicional festa de Ivana Kupala, uma celebração típica da Ucrânia que é o ponto central dos mistérios da trama. Segundo a emissora, a série apresenta um universo inédito no audiovisual nacional: uma comunidade rural, com casas de madeira de cultura ucraniana, envolta em mistérios.
A série foi criada e escrita por Ana Paula Maia (confira a entrevista com ela abaixo) e conta com a direção artística de Carlos Manga Jr. e direção de João Paulo Jabur e Pablo Müller. Inicialmente, o lançamento estava previsto para março de 2020, mas devido à pandemia do novo coronavírus, teve de ser adiado para junho e depois, novamente prorrogado, dessa vez para outubro.
O drama sobrenatural está no centro da narrativa e ditou o uso da tecnologia como elemento essencial da ambientação da série.
Na pré-produção, o desafio estava bastante atrelado às locações e ao planejamento de captação. Havia uma necessidade de sincronizar as equipes, a pré-montagem, o pre-light e afins para fazer as tomadas com o timing alinhado à expectativa do diretor em cada cena. Inclusive, os equipamentos foram pensados para atender essa demanda.
Antes de começar a gravar no Rio de Janeiro, as gravações de ‘Desalma’ aconteceram em cidades do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná por seis semanas. Foram 36 sets de filmagem, sendo 16 deles numa propriedade de 300 mil metros quadrados, localizada na cidade de São Francisco de Paula, na região serrana gaúcha. Só na primeira temporada, foram 120 pessoas envolvidas e nove meses de trabalho, sendo quatro de gravações no Sul do país.
As captações foram feitas em altíssima qualidade para garantir mais liberdade de pós-produção e atingir um resultado visual ainda melhor. “Toda essa produção aprofundava o clima de mistério, com as imagens mais gélidas e contextualizadas dentro do gênero de terror”, ressalta Luis Otavio Cabral, Gerente de Tecnologia de Dramaturgia.
Durante as gravações foi utilizado muito jogo de iluminação de led, efeito de fumaça, além de movimentos e transições mais fluidos, que exigem o uso de um bom estabilizador de câmera.
Câmeras de alta sensibilidade foram escolhidas para a produção de determinados planos e posições com baixa latitude e que acabaram contribuindo também para dar mais destaque aos personagens, juntamente do uso da luz de preenchimento fill light, trazendo uma profundidade maior de campo e reduzindo o contraste de algumas cenas.
A etapa de pós-produção também carregou um papel importante, com efeitos sutis e capazes de acentuar os detalhes. Os efeitos estão imersos em diversos momentos da série, até para garantir que as imagens fossem capazes de conversar com os anseios do público. Um simples desfoque de lente feito por geração de calor, por exemplo, já criava um resultado importante. Para Cabral, entre as tomadas mais marcantes da produção, em termos de tecnologia, sem dúvidas, estão as cenas da celebração de Ivana Kupala nas duas fases da história, que levaram quatro dias para serem filmadas.
A celebração típica da Ucrânia é o ponto central dos mistérios da trama e para criá-la, a equipe de cenografia e produção de arte construiu uma fogueira de seis metros de altura rodeada por seis fogueiras menores, todas inseridas em um grande círculo de aproximadamente quatro metros de diâmetro, formado por mais de 100 tochas. O fogo também foi complementado através dos efeitos visuais e, no mesmo espaço, foram utilizadas 210 lâmpadas de led para iluminar a árvore. Mais de 150 figurantes se vestiram com roupas típicas ucranianas e coreografaram a tradição milenar.
Outros acontecimentos importantes antecederam a festa, como o desaparecimento de porcos no abatedouro local, que contou com o apoio de mergulhadores profissionais para os efeitos de flutuação, e um atropelamento marcante, retratado com o uso complementar de computação gráfica, além de as cenas envolvendo fenômenos sobrenaturais como as assombrações. Tudo isso foi feito levando em conta princípios essenciais de segurança não só para o elenco, mas para todo o set. Em paralelo às locações externas, os interiores dos cenários de ‘Desalma’ foram reproduzidos nos Estúdios Globo.
Para alcançar a amplitude de som, a equipe de pós-edição contou com a consultoria do sonoplasta alemão Alexander Wurz, especialista em produções do gênero de suspense sobrenatural que tem no currículo obras como “The Dark Valley”, “Cold Hell” e “Dark”. “O convite para ser um consultor criativo para uma série dramática sobrenatural foi muito emocionante porque o desafio era priorizar cenas-chave da série. Analisamos como podíamos transpor e destacar cenas importantes e implementá-las em um design de som criativo. Isso é importante para um conteúdo de alta qualidade. Também foi interessante ver como a Globo está trabalhando com as séries deste gênero”, afirma Wurz.
Já para os efeitos visuais, os tradicionais de 3D e a computação gráfica foram empregados aliados aos efeitos físicos complementares ao trabalho do departamento de arte e maquiagem. Para a segunda temporada, a proposta é dar continuidade a esse aprendizado que tivemos na primeira parte da série.
O diretor artístico de Desalma, Carlos Manga Jr, conduziu a direção da série com um objetivo bem claro: criar um clima de suspense, apreensão e até mesmo um certo incômodo. “É uma série que trabalha no subliminar. Nosso foco foi criar a atmosfera e gerar um estado de suspensão”, explica Manga. Segundo ele, na série nada será entregue facilmente ao público. “Queremos que a audiência imagine por ela mesma. Na direção, criamos atmosferas que levem a imaginação a trabalhar. Você não vê as coisas, tem a sensação. Gosto de chamar de direção sugerida: uma porta fechada que quando aparece de volta está aberta, a câmera que levemente vai se aproximando de um ambiente em que nada acontece”, completa.
Para o diretor, o grande desafio de fazer gênero é acertar na escolha dos códigos. Muitas cenas diurnas foram gravadas no extremo sul do Brasil, em um bosque cercado de árvores, buscando fugir de imagens clichês. “A sensação é que a floresta é infinita. São árvores imensas e praticamente geométricas em colunas, onde o sol não consegue ultrapassar. É como se fosse um tabuleiro de xadrez: quando você está no meio desse bosque, você olha em volta e são árvores e mais árvores. A luz praticamente não chega nas pessoas. É muito interessante porque você sabe que é dia, mas a atmosfera é densa, o sol não consegue ultrapassar essa barreira. É muito bom não ter que usar a noite e o escuro para ser um código de thriller.”
Os desafios tecnológicos de uma ficção de horror
Para o Gerente de Tecnologia de Dramaturgia Luis Otavio Cabral quando se trata de entretenimento, o conjunto sempre faz a obra e essa máxima já está no dia a dia das produções da Rede Globo, principalmente em produtos de gêneros mais habituais, como ação e comédia. Por isso, adentrar o universo do sobrenatural é um desafio a mais. “Na perspectiva técnica, percebemos o quanto precisávamos contribuir para o texto, fazendo a tecnologia ser um complemento sutil, mas essencial para contar a história”, explica.
Ele explica que neste gênero, os planos são mais cadenciados, as imagens ficam mais cobertas de penumbras, o som é sussurrado e mais intenso, e todos os elementos, do pré à pós-produção, acompanham as funções de cada sequência dramatúrgica. “A junção de texto, elenco, produção e direção, complementados pelo uso da câmera correta, somados aos efeitos visuais potencializadores, permitiram entregar uma obra completa e envolvente, do começo ao fim.”
ENTREVISTA
A escritora, roteirista e autora da série original Globoplay ‘Desalma’ Ana Paula Maia é uma grande fã de histórias de terror. Com 7 livros publicados e dois prêmios São Paulo de Literatura, ela diz gostar de terror e sobrenatural desde pequena e assina a sua primeira obra audiovisual.
PAV – Qual é a sua experiência desenvolvendo uma série do gênero horror no Brasil, na primeira e nessa segunda temporada?
Ana Paula – É uma rica oportunidade de trabalhar o meu gênero preferido em Desalma, que traz um drama sobrenatural. Acredito que o horror é um gênero que pode ser explorado em todas as sociedades, pois carrega em si, diversas dimensões e camadas a serem exploradas à cerca da natureza humana.
PAV – No Brasil, horror é considerado underground, apesar de ter grande apelo popular. Por que decidiu apostar neste gênero?
Ana Paula – Porque eu acredito na possibilidade de se fazer terror com boa produção, direção e roteiro. Acredito também que quando o gênero terror é trabalhado dentro das questões das relações humanas e quando se quer usar o gênero como metáfora para alguns assuntos, ele pode funcionar muito bem no Brasil.
PAV – Quais foram os desafios até agora?
Ana Paula – Os desafios de se escrever o gênero é o mesmo quando se quer contar uma boa história: é preciso ter a empatia dos personagens, suas motivações precisam ser reais e os resultados surpreendentes.
PAV – A interrupção da produção devido ao isolamento social afetou o seu trabalho de alguma forma? Você teve que fazer alterações no roteiro por este motivo?
Ana Paula – Afetou sim. Tive que fazer ajustes no texto da segunda temporada para evitar as cenas com aglomerações, evitar os abraços e os beijos. Algumas cenas precisaram ser realocadas porque o ritmo da produção será mais lento, estendendo o tempo das gravações. Havia cenas complexas que demorariam muito a serem feitas. Precisei enxugar.
PAV – Com a produção da segunda temporada antes do lançamento da série, o feedback positivo do público está confirmado. Qual é a sua expectativa com relação ao futuro deste gênero no País?
Ana Paula – Não saberia responder com exatidão, mas o gênero possui muitos fãs e admiradores no Brasil. Faltava investimento e abertura para fazê-lo. Antes de tudo, sou fã do gênero terror, sobrenatural em muitas das suas variações e sempre questionei o motivo de não o termos no Brasil. Acho que há chances positivas de crescimento do gênero no Brasil.
PAV – Se pudesse transmitir uma mensagem para outros profissionais que desejam investir em projetos audiovisuais do gênero de horror/terror, qual seria?
Ana Paula – Invistam! É um gênero que cresce no mundo todo e o Brasil tem potencial para entregar suas histórias.
SERVIÇO
Série Desalma
Gênero: Drama; Sobrenatural
Ano de produção: 2020
Sinopse: O assassinato da jovem Halyna, em 1988, ecoa até os dias atuais na pacata cidade de Brigida, no sul do Brasil. Quando Roman volta a cidade e realiza um ritual de transmigração de alma, os acontecimentos desse universo cheio de mistério e magia trazem à tona a verdadeira história da cidade e seus habitantes, desvendando crimes, extorsões, chantagens e caça às bruxas.
Elenco: Cassia Kis, Claudia Abreu, Maria Ribeiro, Bruce Gomlesvky, Nathalia Falcão, Giovanni De Lorenzi, Alexandra Richter, Isabel Teixeira e Gabriel Muglia, Juliah Mello, João Pedro Azevedo
Temporada 1 – 10 episódios
Temporada 2 – Confirmada